martes, 4 de julio de 2017

Breve reflexão da relação entre Direito e a Teologia

Breve reflexão da relação entre Direito e a Teologia


















Breve reflexão da relação entre Direito e a Teologia

Lucas Ferreira Felipe, Advogado
Publicado por Lucas Ferreira Felipe
há 9 meses
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Na
era contemporânea, é comum a afirmação de que os estados são laicos. Na
verdade, com o advento das revoluções liberais, ocorridas entre o
Século XVII e Século XIX, o movimento iluminista consagrou a
neutralidade do estado em relação aos debates religiosos. Oficialmente,
os estados não teriam qualquer envolvimento com posições ou debates
teológicos. Praticamente todas as constituições ocidentais engastaram em
seus corpos a previsão da laicidade do estado.

No entanto, a
observação atenta da estrutura estatal nos revela outra realidade. A
composição orgânica dos entes estatais não prescinde de elementos
teológicos, esvaziados de seus sentidos originais e tornados em
instrumentos políticos, para legitimar o exercício do poder, seja ele
legítimo, seja ele espúrio.

A mera previsão legal da laicidade
do estado não foi capaz de eliminar a liturgia do exercício do poder
soberano. Todo o poder jurídico e político busca sua legitimação na
teologia.

Estudando a forma de estruturação do poder no Ocidente, George Dumézil formulou a ‘’teoria da tripartição das funções sociais’’.
Segundo o referido Autor, haveria uma tripartição teológica entre os
deuses antigos, na qual as sociedades antigas se espelhariam para fins
de suas organizações. Três seriam as categorias de deuses: a) os deuses
soberanos (dieux soverains), b) os deuses guerreiros (le dieux essentiellement fort et guerrier), e c) os deuses da paz, abundância, e saúde (dieux jumeaux donneurs de santé, de jeunesse, fécondité, de bonheur). (DUMÉZIL, 1988).

Da
análise das sociedades, indo-ariana, europeia, iraniana, e romana,
pode-se extrair, segundo o Autor, que toda a miríade de deuses adorados
por esses grupos humanos poderiam ser enquadrados em alguma das três
funções descritas acima. Aos grupos de deuses, corresponderiam os
estratos sociais dos sacerdotes, dos guerreiros, e produtores e
agricultores, na ordem descrita.

Contudo, a soberania política
e/ou religiosa é uma categoria dual, como Dumézil iria posteriormente
demonstrar. De um lado, há o rei-mago (raj, rex), de outro, o jurista-clérigo (brahman, flamen).

A
figura do jurista ou do clérigo, como conhecida em nossa própria
sociedade, atua durante a paz, estabelecendo regras de conduta,
pré-definidas ou transcendentalmente reveladas (como a proibição do assassinato). Ele controla através da criação de laços (nexum)
e também por dívidas. É a figura de Mitra na Índia, de Numa em Roma, de
Têmis na Grécia, mesmo de Miguel na hagiografia semita.

Já o
rei-mago é a figura do grande conquistador que toma seu direito pela
força e inicia a violência, granjeando assim seu poder. É o rei ou deus
cuja soberania é definida por laços mágicos ou obrigações. Seu reinado é
o do poder pela força – ainda que sem uma definição fixa a priori sobre sua moral ou justiça. É a figura de Varuna na Índia, Romulus em Roma, Zeus na Grécia. Os deuses da conquista e dominação.

Em sua Obra ‘’Mitra e Varuna’’,
o Autor que trabalha este aspecto dual da soberania através dos povos,
analisa como a diferença da relação de força-magia da figura de Varuna, o
rei-mago, deus violento da conquista e da obrigação imposta, e do
legislador racional, representado por Mitra, que inicia a soberania
jurídica por pactos (mutuum) e fé.

Esta última figura do
legislador preserva a sociedade não pelo mando, e sim pela validade de
contratos e pela distribuição e pelo cumprimento de responsabilidades.
Em ambos os casos, tanto o poder da força como o poder dos acordos, não
dispensam a teologia como seu discurso de legitimação perante os
súditos.

Tal estrutura social do poder e da sociedade persistiu
mesmo após o advento do cristianismo como principal religião no
Ocidente. A forma de poder, e sua liturgia, persistiu durante a Idade
Média.

Dá-nos notícia disso Georges Duby, em sua obra ‘’As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo’’, assim se expressando sobrea permanência da divisão social tripartite e a cisão da função soberana dual:

“Uns
dedicam-se particularmente ao serviço de Deus; outros garantem pelas
armas a defesa do Estado; outros ainda a alimentá-lo e a mantê-lo pelos
exercícios da paz. São estas as três ordens ou estados gerais da França:
o Clero, a Nobreza e o Terceiro Estado”
. Esta é uma das afirmações
com que abre o Tratado das Ordens e Simples Dignidades que Charles
Loyseau, parisiense, publicou em 1610 e que, ao ser conhecido, logo foi
considerado muito útil, sendo sucessivamente editado durante o século
XVII. Por estas palavras se definia a ordem social – quer dizer a ordem
política –, o mesmo é dizer a ordem simplesmente. Três “estados”, três
categorias estabelecidas, estáveis, três divisões hierarquizadas.
Semelhante à escola, semelhante à sociedade-modelo onde a criança
aprende a estar sentada, sossegada, a manter-se no seu lugar, a
obedecer, a classificar-se. A classe: os grandes, os médios, os
pequenos: o primeiro, o segundo e o terceiro estados. Ou, se
preferirmos, as três “ordens” – esta é visivelmente a palavra preferida
por Loyseau (Duby, 1994)

O advento de uma nova
forma religiosa, em essência, não modificou a liturgia do poder. A
soberania continuou a ser exercida de forma bipartida entre o ‘’rex’’ e o ‘’flammem’’.
Não obstante a Revolução Francesa, imbuída do espírito anticlerical, a
partir das teses de Diderot, D’ Alembert, Voltaire, etc, pretendeu a
radial cisão da soberania bipartida e a laicidade estatal.

Em tese, o ‘’ancién regime’’
foi derrocado com a Revolução Francesa. A nobreza, a classe guerreira, e
o clero, a classe mística, foram alijados do exercício do poder,
preservando apenas, em alguns lugares, funções que seriam cerimoniais em
relação ao aparato estatal. A partir disso que as constituições
passaram a prever a laicidade do estado. Essa é a versão oficial dos
fatos da separação do estado e religião.

No entanto, seria o
exercício do poder infenso a tudo isso? Realmente, o poder político
dispensaria o uso da teologia como discurso de legitimação? Parece que
ainda a religiosidade se mantém como forma de exercício do poder
estatal, embora o clero não participe diretamente da força política.

Vejamos um recentíssimo exemplo disso. Durante a votação da admissão do procedimento de ‘’impeachement’’
da Presidente Dilma Roussef, ocorrida na Câmara dos Deputados, foram
registradas ao menos 58 (cinquenta e oito) menções a Deus como elemento
legitimador dos votos proferidos pelos senhores parlamentares.

Caso,
realmente, a teologia não estivesse viva como discurso na política, tão
grande menção ao poder divino seria completamente destituída de sentido
em um debate parlamentar.

Acobertado pelo manto da laicidade, o
uso político de práticas originadas na esfera da religiosidade tem se
intensificado cada vez mais. Carl Schmitt já noticiava essa relação em
sua obra ‘’Teologia Política’’ nos seguintes termos:

Todos
los conceptos sobressalientes de la moderna teoria del Estado son
conceptos teológicos secularizados. Lo cual es certo no sólo por rázon
de su desenvolvimiento histórico, em cuanto vinieram de la Teología a la
teoríadel Estado, convirtiéndose, por ejemplo, el Dio omnipotente em el
legislador todo-poderoso, sino também por razón de su estrutura
sistemática, cuyo o conocimento es imprescindible para la consideración
sociológica de estos conceptos’’[1].

A partir dessa
contestação, nota-se que a enorme gama de conceitos da teoria do estado,
jurídicos ou políticos, são extraídos do âmbito da teologia cristã.
Desvestidos de sua natureza sacra, os conceitos são utilizados para
garantir o exercício do poder, justificando os atos estatais.

Mero
exame demonstra isso dos ritos do poder. Seja no âmbito jurídico, seja
no âmbito político, fica clara a existência de certa ‘’liturgia’’ no exercício do poder. A expressão ‘’liturgia’’ deriva da contração dos termos gregos ‘’leit’’, que significa povo e ‘’urgia’’, que transparece a ideia de trabalho.

Desse modo, ‘’liturgia’’
significa em princípio um trabalho público. O termo assumiu especial
significado na teologia cristã, consistindo no conjunto dos elementos e
práticas do culto religioso (missa, orações, cerimônias, sacramentos,
objetos de culto etc.) instituídos por uma Igreja ou seita religiosa.

O exercício do poder no Ocidente sempre dependeu de uma especial ‘’liturgia’’.
Dado o sincretismo e a bipartição da ideia de soberania, conforme
explicado anteriormente, a prática do poder é indissociável de certos
ritos, especialmente linguísticos. Não somente a Igreja possui ‘’liturgia’’. O estado também a possui e extraiu sua concepção de ‘’ser’’ de pensamentos teológicos.

Exemplificativamente,
o Hobbes, ao formular o conceito de seu Leviatã, afirma categoricamente
que o corpo político seria formado pela soma das renuncias aos direitos
individuais em prol da paz que o estado poderia propiciar. A afirmação
do Autor é realizada nos seguintes termos:

Isso é
mais do que consentimento ou concórdia, pois resume-se numa verdadeira
unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de
cada homem com todos os homens [...] Esta é a geração daquele enorme Leviatã,
ou antes – com toda reverência – daquele deus mortal, ao qual devemos,
abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa” [...] É nele que consiste a
essência do Estado, que pode ser assim definida: ‘Uma grande multidão
institui a uma pessoa, mediante pactos recíprocos uns aos outros, para
em nome de cada um como autora, poder usar a força e os recursos de
todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a
defesa comum’. O soberano é aquele que representa essa pessoa”. (HOBBES,
2003, p.130-1 31).

Estado todos os membros da sociedade, em um momento inicial, no estado de natureza do ‘’bellum omnum contra omnes’’,
ainda que gozando de inteira liberdade, não poderiam assim permanecer
diante do risco imenso que correriam suas vidas. Segundo Hobbes, somente
com a renúncia condicional da liberdade em prol do um ser político é
que poderia ser estabelecida a paz.

Dar poder ao Leviatã seria
renunciar o direito a todas as coisas para garantir a paz e por
consequência poupar a própria vida, contentando-se com mesma a liberdade
que desfrutam os outros seres humanos. É o contrato. Tem-se a liberdade
de fazer tudo, desde que não prejudique os outros. Quando é firmado o
contrato entre os homens, não basta o fundamento jurídico, é preciso que
exista um Estado armado para forçar os homens a respeitar as leis e as
regras.

Certamente, tal pensamento da formação de um ‘’corpo político’’ teve sua inspiração no que já afirmava São Paulo em sua ‘’Carta aos Coríntios’’, 12:12, 27, que deve ser descrito:

(...)
Porque, assim como o corpo é um, e tem muitos membros, e todos os
membros, sendo muitos, são um só corpo, assim é Cristo também. Pois
todos nós fomos batizados em um Espírito, formando um corpo, quer
judeus, quer gregos, quer servos, quer livres, e todos temos bebido de
um Espírito. Porque também o corpo não é um só membro, mas muitos (...)
Para que não haja divisão no corpo, mas antes tenham os membros igual
cuidado uns dos outros. De maneira que, se um membro padece, todos os
membros padecem com ele; e, se um membro é honrado, todos os membros se
regozijam com ele. Ora, vós sois o corpo de Cristo, e seus membros em
particular (...)

Da comparação dos pensamentos, observa-se que o ‘’corpus mysticum’’ foi
raiz da ideia do Leviatã de Hobbes. Não é por acaso que a sua obra
magna possui o nome de um ser mitológico mencionado nas Escrituras como
um poderoso monstro do mar. O Livro de Jó, capítulos 40 e 41, aponta a
imagem mais impressionante do Leviathan, descrevendo-o como o maior (ou o
mais poderoso) dos monstros aquáticos. No diálogo entre Deus e Jó, o
primeiro procede a uma série de indagações que revelam as
características do monstro, tais como "ninguém é bastante ousado para provocá-lo" ou "Quando
se levanta, tremem as ondas do mar, as vagas do mar se afastam. Se uma
espada o toca, ela não resiste, nem a lança, nem a azagaia, nem o dardo.
O ferro para ele é palha, o bronze pau podre
".

Ainda
que a cristandade não tenha identificação com o conceito de corpo
místico como mero espaço social, a forma de organização proposta por
Hobbes é símile. O ‘’corpus’’ da Igreja se chama ‘’místico’’, uma vez que “os
cristãos não se coadunam apenas como se agrupam os cidadãos dum estado;
o principal ali é a fonte invisível da unidade: Cristo. Os cristãos não
são simplesmente um corpo social a mais, entre muitos outros;
os
cristãos formam o Corpo de Cristo. (...) Cabe então (1 Cor, XII, 12) a
comparação do corpo humano, diverso e uno. São Paulo, porém, alargando
subitamente a perspectiva, ultrapassa a questão dos carismas e afirma de
maneira universal: apesar de muitos, os fiéis formam
um só Corpo
que é Cristo. Com efeito, foram eles todos batizados num só Espírito,
pelo que desaparecem as diferenças de raça e de condição social. É muito
de notar o final do versículo. Esperaríamos: ‘como o corpo é um e tem
muitos membros e todos os membros do corpo embora muitos, formam contudo
um só corpo,
assim também os fiéis’. Em vez disto, S. Paulo
escreve: ‘assim também Cristo’; entende-se: não o Cristo individual,
senão o Cristo Místico, isto é, Cristo em união com os fiéis, como será
dito no versículo 27: ‘vós sois Corpo de Cristo’”
(O Corpo Místico, Pe. Dr. M. Teixeira-Leite Penido, Vozes, 1944, p. 151).

O
contrato social nada mais seria que um corpo místico sem sua natureza
sacra, constituindo-se somente como uma moldura para agrupamento de uma
determinada sociedade. A realidade ontológica do estado moderno é um
conceito teológico desnudo de sua sacralidade.

Não fosse apenas isso, assim como na ‘’liturgia’’,
o estado possui seu próprio meio de expressão. Sua linguagem é
específica em diversos termos, objetivando que somente seus iniciados
possam a compreender. Há uma íntima relação entre linguagem e
sacralidade. Todas as religiões possuem alguma língua destinada a
expressar o divino. No caso do catolicismo, o latim seria a língua de
poder religioso. N

Já o grande Teólogo do Século II, Orígenes, em sua obra ‘’Contra Celso’’, manifesta o valor da linguagem como instrumento ‘’mágico’’ na religião. Sua opinião está expressa nos seguintes termos:

(...)
‘’ Se fossemos capazes de provar que aquilo que chamamos magia não é,
como pensam os discípulos de Epicuro e de Aristóteles, uma prática de
todo incoerente, mas, como demonstram os peritos nesta arte, um sistema
coerente, cujos princípios são conhecidos de poucos: diríamos que os
nomes de Sabaoth, Adonai, e todos os outros transmitidos entre os
hebreus com grande veneração são dados segundo realidades comuns ou
criadas, mas conforme uma misteriosa ciência divina que é atribuída ao
Criador do universo. Por essa razão, esses nomes têm efeito quando
expressamos numa conexão particular que os entrelaça, como igualmente
outros nomes pronunciados em língua egípcia com relação a certos
demônios tem efeito sobre determinada esfera (...)’’

As formas de poder estatal, especialmente a jurídica, não ignoram essa realidade que compõe a ‘’liturgia’’. O Direito é repleto de termos próprios extraídos da teologia. O juiz ‘’absolve’’ o processado. O processo civil estabelece os ‘’ritos’’ que uma causa possuirá. A noção de ‘’culpa’’ na responsabilidade civil. O ‘’livre arbítrio’’ do Direito Penal etc.

Ainda,
é curioso notar que há uma correspondência orgânica entre a própria
tripartição dos poderes estatais e as funções da Santíssima Trindade.
Com a legalização do cristianismo, efetuada por meio do Edito de Milão, o
império romano se cristianizou oficialmente. Os paradigmas políticos
existentes se modificam completamente com o passar dos anos.

No
início do cristianismo, havia muitas discussões acerca da natureza de
Cristo e sua relação com a Trindade. As duas correntes mais proeminentes
eram os arianos e os trinitários.

Pregavam os arianos,
encabeçados pelo Bispo Ario, que o Filho, o Cristo, era criado, não
gerado. Sob esse enfoque, o Filho e o Espírito Santo seriam inferiores
ao Pai. O universo seria governado a partir da monarquia do Pai. Já os
trinitários, liderados por Basílio de Nissa e Gregório de Nazianzo,
defendiam a concepção de que o Filho, o Espírito Santo e o Pai eram
vértices da mesma figura denominada no Ocidente como Deus, que é uno.
Por conseguinte, não haveria relação hierárquica entre os integrantes da
Santíssima Trindade. A divisão era meramente de ‘’oikonomia’’ divina.

No
âmbito da Teologia, prevaleceu a concepção do Deus triuno, consagrada
expressamente pelo Primeiro Concílio de Nicéia, ocorrido em 325 DC, no
qual os padres conciliares fixaram a profissão de fé contra os sectários
do Bispo Ário nos seguintes termos:

Cremos em um só
Deus, Pai todo poderoso, Criador de todas as coisas, visíveis e
invisíveis; E em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho de Deus, gerado do
Pai, unigênito, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, Luz da Luz,
Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial
do Pai, por quem todas as coisas foram feitas no céu e na terra, o qual
por causa de nós homens e por causa de nossa salvação desceu, se
encarnou e se fez homem, padeceu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu
aos céus e virá para julgar os vivos e os mortos; E no Espírito Santo.
Mas quantos àqueles que dizem: 'existiu quando não era' e 'antes que
nascesse não era' e 'foi feito do nada', ou àqueles que afirmam que o
Filho de Deus é uma hipóstase ou substância diferente, ou foi criado, ou
é sujeito à alteração e mudança, a estes a Igreja anatematiza.

Não
obstante, a tripartição dos poderes, prevaleceu como um paralelismo das
funções do Deus trino. O Deus Pai é o legislador universal, que
conferiu as leis aos hebreus por meio de suas ‘’tábuas da lei’’. O
Deus filho, unigênito, exerce a função de julgador, seja para a
condenação, seja para a redenção. O Filho é proclamado como aquele que
virá para ‘’iudicare vivos et mortuos’’ no ultimo dia, como
afirma o Credo Niceno. Por sua vez, o Espírito Santo é o executor das
obras da economia divina, cumprindo os desígnios universais (geração de
Cristo, inspiração dos profetas, execução de milagres) como se fosse o
grande executivo celestial.

A proximidade existente entre as
funções estatais e aquelas da economia divina é notável. Não fosse
apenas isso, a própria hierarquia do poder político toma empréstimo um
conceito teológico.

Mesmo o sentido de lei é assim configurado.
Diz-se que a lei é norma e que o legislador se vale da lei para, através
dela, atribuir efeitos jurídicos aos atos e fatos da vida em sociedade,
visando primordialmente a promoção da paz entre os seres humanos. Por
isso, em geral, as leis têm a finalidade de proteger alguns valores que o
legislador considera socialmente relevantes, tais como a vida, a honra,
a liberdade, a justiça, a segurança, a igualdade, a integridade física e
moral, o trabalho, o bem estar e outros dessa natureza.

Jamais
se vê a lei como um veículo sem conteúdo. O conteúdo nem sempre poderá
ser focado no bem comum. Pode-se, e há muitos exemplos disso, editar uma
lei com o fito de beneficiar uma categoria em detrimento de toda a
coletividade.

O mesmo se dá com a estrutura executiva. A
Administração Pública organize-se de modo piramidal. A burocracia
estatal se baseia no poder hierárquico- disciplinar do Direito
Administrativo. Em uma definição bastante comum nos manuais, o uso do
poder hierárquico a Administração Pública distribui e escalona as suas
funções executivas; no uso do poder disciplinar, ela controla o
desempenho dessas funções e a conduta interna de seus servidores,
responsabilizando-os pelas faltas cometidas.

Maria Sylvia
Zanella Di Pietro (2005, p. 74) descreve o poder hierárquico, na
seguinte conformidade: Em consonância com o princípio da hierarquia, os
órgãos da Administração Pública são estruturados de tal forma que se
cria uma relação de coordenação e subordinação entre uns e outros, cada
qual com atribuições definidas em lei. Para a autora, é desse poder que
extraímos as seguintes prerrogativas administrativas: “a de rever os
atos dos subordinados, a de delegar e avocar atribuições, a de punir;
para o subordinado surge o dever de obediência”
(Di Pietro, 2005, p. 74).

Nessa
linha, o processo de tomada de decisões e o fluxo de informações são de
natureza vertical, ou seja, o exercício do poder vem do alto. A
informação vem de baixo, ascendendo ao detentor da função decisória.

O sentido ‘’sagrado’’ da hierarquia é um conceito apresentado por Dionísio, o Aeropagita, que em sua obra ‘’De Coelesti Hierachia’’, assim se expressa sobre o tema, ressaltando a importância da estrutura piramidal de poder: ‘’Em
meu julgamento, hierarquia é uma ordem sagrada, um saber e atuar o mais
próximo possível da Deidade. Elevam-se a imitar a Deus
proporcionalmente às luzes que dEle recebem. A Beleza de Deus tão
simples, tão boa, origem de toda a perfeição, não admite em si a menor
dessemelhança. Dispensa a todos, segundo o mérito de cada um, sua luz e
aperfeiçoa-os revestindo-os misteriosa e estavelmente de sua própria
forma’’.


Em sua obra, o Teólogo frisa a importância da
hierarquia celestial no comando do inverso, expondo que o saber, o
conhecimento intimo dos planos de Deus, seria o elemento justificador da
existência de tal escalonamento. Aqueles anjos que mais integrados ao
amor divino estivessem, logicamente, mais participação e poder na obra
divina teriam. A questão seria toda definida pelo mérito.

Assim,
anjos seriam menores que arcanjos, que seriam menores que os tronos e
as potestades, etc, considerando-se o nível de perfeição associado a
cada classe celestial.

A ideia debatida é muito próxima da
estrutura hierárquica da Administração Pública. Exemplificativamente,
quando um cidadão apresenta sua petição para apreciação do Poder
Público, ela não tramita diretamente para aquele que detém o poder de
deliberar.

Há o estabelecimento de todo um rito para que o
expediente siga. Apresenta-se o pedido no serviço de protocolo,
integrado pelo escalão administrativo do órgão. Estes, por sua vez, em
uma sucessão de atos que elevam o procedimento – carimbos de encarregados, diretores, chefes, etc – até que seja deliberado pelo detentor do poder de decisão, o qual aprecia o pleito sem contato com o postulante.

Isso
explicaria o recorrente problema de afetação de muitos ocupantes de
relevantes funções públicas. Eles tendem a se identificar com essa
estrutura angélica em sua concepção.

Contudo, há uma imensa distinção. Se é verdade que na ’De Coelesti Hierachia’’ o
critério para a proximidade com Deus, com o poder uno, é o mérito
exclusivo, baseado na maior perfeição, o mesmo não se pode dizer que
ocorra na Administração Pública no geral.

É fato bem conhecido que, por serem os cargos de chefia, direção, e assessoramento, funções ‘’ad nutum’’, nos termos do art. 37, V, da Constituição Federal,
não se destinam no geral ao provimento por mérito. As opções adotadas
se baseiam em critérios de política, alianças partidárias, etc.

Os
ministérios, por exemplo, não são ocupados pelos mais renomados
especialistas nos assuntos de suas pastas. Escolhem-se pessoas para a
investidura que possuem relações com os titulares do poder. Embora não
se prescinda muitas vezes de um critério de formação técnica, este não é
o fator determinante de uma escolha de natureza política.

A
suma de tudo isso é algo aterrador. O poder público adota a liturgia
religiosa como forma de exercício do poder. Trata-se de discurso de
legitimação social, como já deve ter ficado evidenciado. A estrutura
teológica é esvaziada de seu sentido sacro. Dentro da moldura vazia, o
preenchimento é feito pelas decisões políticas, que não contemplam o bem
comum, mas sim o bem do próprio poder da situação, que deseja mais que
tudo a ‘’imago dei’’ para se justificar.

O real desejo do poder político é se tornar um poder sacro, que se justifique pelo mero poder, em um exercício do ‘’ouroboros’’, tornando-se arquetípico em sua definição, e dominando sem limite.

Contudo,
o uso das estruturas teológicas para fins de dominação não encontra
guarida nos textos dos Evangelhos. Basta a leitura do que consta em João
18:36 para que fique evidenciada a relação entre ambos, expressa da
seguinte forma: Pilatos, tornando a entrar, pois, no palácio, e tendo
feito vir Jesus, lhe disse: Sois o rei dos Judeus? Jesus lhe respondeu:
Meu reino não é deste mundo. Se meu reino fosse deste mundo, minhas
gentes teriam combatido para me impedir de cair nas mãos dos Judeus; mas
meu reino não é aqui. Pilatos, então, lhe disse: Sois, pois rei? Jesus
lhe replicou: Vós o dissestes; eu sou rei; eu não nasci e nem vim a este
mundo senão para testemunhar a verdade; qualquer que pertença à verdade
escuta minha voz”.

Da interpretação, depreende-se que a verdadeira esfera do ‘’sacro’’,
não pode ser contida ou manejada de qualquer forma dentro do exercício
do poder temporal. O Reino de Deus, por definição, não pode ser desse
mundo. A própria liturgia do poder em razão disso se encontra em estado
ausência de legitimação. Por isso, urge que as relações entre os dois
saberes sejam melhor estudadas, objetivando a exposição da crueza das
formas da liturgia do poder estatal e os objetivos ocultos dela.


[1] SCHMITT. Carl. ‘’Teología Política. Cuatro Ensaios sobre la Soberanía’’ Editora Struhart & Cia. Argentina. Pag.57.
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